Os cientistas estão a avaliar se o impacto das actividades humanas na
Terra é tão grande que deu origem a uma nova época geológica, o
Antropoceno. Há várias datas em estudo para o início desta época, como a
revolução industrial ou a era nuclear, e têm por base marcas humanas
nos estratos geológicos.
Nas décadas após a chegada de Cristóvão Colombo à América, em 1492,
morreram dezenas de milhões de pessoas que já lá viviam há milhares de
anos, à custa da guerra e das doenças levadas pelos europeus. A tragédia
ficou marcada na própria Terra: em 1610, a concentração de dióxido de
carbono atingiu um valor mínimo, que ficou registado nas camadas de gelo
na Antárctida. A relação entre esta mortandade e o dióxido de carbono é
simples. Foram abandonados milhões de hectares de terra que eram
anteriormente cultivados por aqueles povos. Nesses locais, as florestas
voltaram a crescer e retiraram muito dióxido de carbono da atmosfera, o
que levou a uma diminuição da concentração deste gás.
Esta é uma das múltiplas memórias sobre a história da humanidade que
os geólogos podem encontrar nos gelos e sedimentos mundo fora. A nossa
espécie terá cerca de 200.000 anos de existência, um piscar de olhos na
vida da Terra com os seus 4500 milhões de anos. E, no entanto, o rasto
que fomos deixando é incontornável. Desde o fabrico de utensílios de
pedra para a caça, que terá feito desaparecer muitas espécies de grandes
mamíferos, passando pelo aparecimento da agricultura e das primeiras
cidades, até à revolução industrial e ao lançamento de bombas nucleares,
as actividades humanas ficaram registadas nos sedimentos dos últimos
milhares de anos.
Por tudo isto, surgiu recentemente a expressão "antropoceno", usada
de um modo informal na geologia, arqueologia ou sociologia, para
denominar a actual época geológica, dominada pelas actividades humanas,
cujas consequências são visíveis nas alterações climáticas, na perda de
biodiversidade e no aumento da acidez dos oceanos. Mas o conceito não
tem o estatuto oficial da União Internacional das Ciências Geológicas
(UICG), a entidade que define as unidades de tempo geológicas. Segundo
esta união, a época que estamos agora a viver não é o Antropoceno mas
sim o Holoceno, iniciado no final da última era glacial, há cerca de
11.700 anos.
Isso poderá vir a mudar. Para se tornar oficial, o Antropoceno tem,
primeiro, de ser bem documentado. Ou seja, os geólogos e outros
cientistas têm de encontrar, nas camadas estratigráficas da Terra, as
marcas deixadas pelas actividades humanas que representam uma mudança
global. Estas marcas terão de estar associadas a uma data.
O ano de 1610 é uma data recentemente proposta por Simon Lewis e Mark
Maslin, investigadores do Departamento de Geografia da University
College de Londres, no Reino Unido. Num artigo da revista Nature, os
dois cientistas defendem ainda o uso de marcas estratigráficas
secundárias associadas à data. Há 70 locais, onde os sedimentos
lacustres e marinhos mostram, a partir de 1600, a existência de pólenes
de milho — uma planta originária das Américas. Esta escolha representa a
importância dada pela dupla de cientistas ao movimento súbito e inédito
de dezenas de espécies animais e vegetais que atravessaram o oceano
Atlântico, levados pelo homem nos dois sentidos, e que mudaram para
sempre a biogeografia da Terra. Por outro lado, defendem que é a chegada
às Américas que iniciou a globalização.
Nos últimos meses, a discussão sobre o Antropoceno tem sido intensa e
outras datas têm sido estudadas: o início da agricultura; a revolução
industrial; ou o primeiro teste nuclear, a 16 de Julho de 1945 (a que se
seguiram as bombas nas cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, e
depois testes nucleares). Há, porém, outros cientistas que são críticos
da tentativa de tornar esta época oficial, referindo que ainda é muito
cedo para aferir verdadeiramente o impacto que o homem está a ter na
geologia do planeta, e defendendo que este impacto, qualquer que ele
seja, apenas está a começar.
"Se os cientistas aplicarem os mesmos critérios usados para definir
as épocas passadas, e os dados indicarem que já entrámos numa época
dominada pela intervenção humana, então a comunidade científica deverá
considerar muito seriamente a definição formal de uma nova época", diz
ao PÚBLICO Simon Lewis, resumindo a questão.
História do planeta
A época do Holoceno está dentro do período Quaternário, iniciado há
2,58 milhões de anos, que por sua vez se inclui na era do Cenozóico,
nascida há 66 milhões de anos, quando um meteorito atingiu a Terra,
pondo o fim à era dos dinossauros — o Mesozóico. Um dos mais importantes
passos da ciência foi esta organização do passado geológico da Terra em
unidades associadas a camadas estratigráficas, que nos mostram o imenso
historial do nosso planeta: as primeiras formas de vida, a formação do
grande continente Pangeia, as extinções em massa de espécies, a ascensão
e a queda dos dinossauros, o aparecimento dos primatas, nós próprios.
Os fósseis de organismos pré-históricos encontrados nos estratos
geológicos são muitas vezes aproveitados para representar a transição de
um período para o outro, dando-nos pistas de grandes transformações no
clima, na vida e na geologia da Terra. Outras vezes é a vida que
transforma o planeta, como o surgimento do oxigénio na atmosfera, vindo
da fotossíntese feita pelas cianobactérias, há mais de 2000 milhões de
anos, que permite que respiremos. Por isso, os humanos não são os
primeiros seres vivos capazes de alterar o planeta.
"O que interessa quando se divide o tempo na escala geológica são as
mudanças geológicas da Terra, devido a causas tão diferentes como a
queda de meteoritos, o movimento de continentes ou as erupções
vulcânicas continuadas", explica o artigo da Nature. "A actividade
humana é agora global e é a causa dominante da maioria das mudanças
climáticas. Os impactos da actividade humana serão provavelmente
observáveis no registo estratigráfico geológico durante milhões de
anos."
Para fazer esta avaliação, foi criado o Grupo de Trabalho do
Antropoceno, que faz parte da Comissão Internacional de Estratigrafia da
UICG. "Parte do interesse pelo Antropoceno deve-se ao facto de [este
conceito indicar] que as actividades humanas podem afectar a Terra a uma
escala geológica e mudar o curso da história do planeta", explica ao
PÚBLICO Jan Zalasiewicz, geólogo da Universidade de Leicester, que
organiza as reuniões daquele grupo. "Há implicações sociais claras, mas o
nosso trabalho é olhar para os testemunhos geológicos da forma mais
objectiva possível e compará-los com mudanças que aconteceram no
passado."
Em Janeiro, num artigo co-assinado por Jan Zalasiewicz, na
revistaQuaternary International, sugere-se que o início do Antropoceno
seja 16 de Julho de 1945, o dia da primeira explosão de uma bomba
nuclear.
Os cientistas do Grupo de Trabalho do Antropoceno começaram por
analisar três propostas de datas para o início da nova época: uma mais
antiga e que abrange desde as grandes extinções de mamíferos até ao
início da agricultura e a sua expansão; a revolução industrial, a partir
do início do século XIX após o desenvolvimento da máquina de vapor e
que iniciou o aumento do dióxido de carbono na atmosfera; e o período
após a Segunda Guerra Mundial a que se chama "a grande aceleração",
caracterizado pelo aumento exponencial de população, a agricultura
intensiva com o uso de adubos, as grandes emissões de dióxido de
carbono, a produção de plásticos e a emissão de isótopos radioactivos
devido aos testes de bombas nucleares.
A equipa defende que as marcas deixadas pelo fenómeno da "grande
aceleração" são temporalmente uniformes na Terra, ao contrário das
outras duas datas. Tanto a agricultura como a revolução industrial
expandiram-se geograficamente ao longo do tempo, por isso é difícil
obter um sinal específico nos estratos geológicos associado a uma data
que represente aqueles fenómenos. Pelo contrário, a "grande aceleração"
deixou um "sinal mais pronunciado e sincronicamente global" nos
sedimentos, lê-se no artigo.
Por isso, os cientistas escolheram 16 de Julho de 1945 como início
Antropoceno, caracterizado pelos primeiros depósitos estratigráficos
"que incluem os isótopos radioactivos".
À espera de aprovação
Mas o geólogo William Ruddiman, da Universidade da Virgínia, nos
Estados Unidos, discorda deste esforço. "Acho que nenhuma data pode
captar todas as mudanças que os humanos causaram ao longo de milhares de
anos", diz ao PÚBLICO. Num pequeno artigo publicado este mês na
revista Science, Ruddiman e outros três cientistas dos Estados Unidos,
do Reino Unido e da Suíça, punham em causa a necessidade de uma
definição oficial de Antropoceno, sugerindo apenas um uso informal.
"Escolher 1945 iria omitir as duas maiores mudanças: o desbravamento de
florestas e o cultivo de pradarias, ambos parte da longa história da
agricultura. Por outro lado, em 1610 quase todas as florestas
cultiváveis da Eurásia já tinham sido transformadas pela agricultura,
apesar de isso ainda não ter acontecido na maioria da América",
explica-nos.
Mas Simon Lewis, co-autor do artigo da Nature, que não pertence ao
Grupo de Trabalho do Antropoceno, contra-argumenta. É justamente por
toda a gente estar a usar este conceito de uma maneira informal que são
necessárias "definições claras para nos compreendermos uns aos outros",
diz-nos.
Em 2016, o Grupo de Trabalho do Antropoceno vai apresentar uma data a
uma das subcomissões da UICG. Para o conceito passar a integrar a
Tabela Cronoestratigráfica Internacional, da UICG, e derrubar o Holoceno
como época actual, terá de ser aprovada primeiro nessa subcomissão,
depois na Comissão Internacional de Estratigrafia e finalmente na
própria UICG.
"Se os dados forem insuficientes, e forem necessárias mais provas,
então devemos esperar", diz Simon Lewis. Mas o cientista alerta para a
importância mais lata deste conceito, que evidencia as consequências
humanas num contexto geológico: "Definir os humanos como um superpoder
geológico ajudar-nos-ia a pensar numa escala e num período de tempo
maiores, algo que as nossas instituições políticas são incapazes de
fazer. Saber que o futuro do único local no Universo onde a vida existe
está a ser condicionado pela actividade humana pode ter grande
influência para cuidarmos melhor da Terra."
Fonte: http://geofisicabrasil.com